domingo, 13 de setembro de 2009

domingo, 9 de agosto de 2009

Momento de criatividade...


Às vezes acordo com a nítida impressão de ser uma Avenida Marginal. Já que tudo passa por mim, mesmo que em algumas ocasiões demore, um pouco mais, devido aos congestionamentos de desilusões...

Tenho um talento infinito para a solidão, mesmo estando constantemente cercada por tantas pessoas...

segunda-feira, 3 de agosto de 2009


“Covarde. Você tem tanto medo da rejeição que acaba abortando qualquer possibilidade de amor.”

quinta-feira, 16 de julho de 2009


Mais um texto antigo, porém muito atual: “A morte de um amigo”

Ontem fui chamada de superficial e incapaz o que me ofendeu e sobretudo me amargurou muito...Não sou superficial, tão pouco incapaz, luto por tudo aquilo que acredito e me dôo sem restrições, me entrego por inteira e amo incondicionalmente...Não sei amar pela metade, gostar só um pouquinho ou ser só meio amiga...Odeio gente simpática, do tipo que “faz uma social” com todo mundo, mas na verdade está a milhas e milhas de qualquer um...Também odeio gente infeliz, que fica o tempo todo mal dizendo a vida, sem ter coragem de enfrentar seus próprios problemas...Covardes, tem tanta gente com problemas realmente grandes por ai...Ontem descobri que realmente superficial é você com esse jeito de “garoto mau”, sempre precisando provar para todo mundo quão infalível e inteligente você é...Sempre impecável, falando esse português polido e fazendo ar de gênio solitário...Na verdade solitário é a única coisa que você realmente é ...Por sua incapacidade de amar e seu grandioso talento para afastar todas as pessoas que já se importaram com você... Ontem morreu alguém no meu mundo que eu cheguei a considerar um amigo, mas na verdade não era... E depois de ter chorado um pouco eu me vejo incapaz de sentir falta da sua presença superficial...

domingo, 12 de julho de 2009

A O² Filmes está de parabéns “Som e Fúria” é no mínimo fantástico!!!







Só um pouquinho de lirismo, ou seja, lá vem C.F.A mais uma vez...


Para prevenir surpresas, tenho deixado sempre abertas todas as janelas e todas as portas.”

“Que algo sempre nos falta — o que chamamos de Deus, o que chamamos de amor, saúde, dinheiro, esperança ou paz. Sentir sede faz parte. E atormenta.”


Sinto dor: estou viva.

"Que se possa sonhar, isso é o que conta."


"Deixa o vento soprar, let it be..."

”Você não vai encontrar caminho nenhum fora de você. E você sabe disso. O caminho é in, não off”

sábado, 11 de julho de 2009

Quer conhecer Luanda?


Comece por um ótimo livro - “Filhos da Pátria: contos” by João Melo.

sexta-feira, 10 de julho de 2009


"A vida tem caminhos estranhos, tortuosos às vezes difíceis: um simples gesto involuntário pode desencadear todo um processo। Sim, existir é incompreensível e excitante। As vezes que tentei morrer foi por não poder suportar a maravilha de estar vivo e de ter escolhido ser eu mesmo e fazer aquilio que eu gosto - mesmo que muitos não compreendam ou não aceitem।"
(Caio Fernando Abreu)

Texto antigo: Inverno de 2008 – “Uma pedra, dentro da noite veloz”

A minha idéia inicial era escrever algo sobre o Enem, já que a publicação deste texto irá acontecer poucos dias após a realização do Exame Nacional do Ensino Médio. Prova que tem por ambição equiparar por meio de uma única avaliação o ensino médio aplicado nas cinco regiões do país. Acontece porém, que algumas idéias são simplesmente atropeladas por urgências maiores. Assim, outro dia voltando para casa tarde da noite sem que ninguém pudesse esperar uma pedra partiu o vidro do ônibus em que eu estava. E por mero e inexplicável acaso não feriu ninguém. Ao empregarmos conceitos da física, matéria que compõe o currículo do ensino médio e é cobrada no Enem, com a velocidade final que a pedra alcançou, ela poderia ter causado bem mais do que um simples susto em mim e nos outros passageiros. Para falar a verdade àquela pedra me atingiu bem fundo, desestabilizando julgamentos formados e idéias em construção, por fim, bagunçando tudo. Em situações como está, a pergunta é sempre a mesma: “Por que?” Definitivamente, não acredito que tenha sido apenas uma simples e inofensiva brincadeira, mas sim a resultante de uma somatória que começou há muito tempo. Pode parecer lugar comum, entretanto, ainda acredito que a violência deriva, pelo menos na maioria das vezes, da sociedade estratificada qual vivemos hoje. A vergonhosa distribuição de renda, a falta de direitos primários ao homem, como: moradia, alimentação, educação, saneamento-básico e saúde. Tudo isso fomentado pela inexistência de possibilidades de mudança. O jovem que prestou Enem no último dia 31 de Agosto, quase sempre, vê no Prouni a tão sonhada tábua de salvação. A chance, não de estudar, pesquisar e crescer intelectualmente, mas de ter um diploma que vai tarimbá-lo para o mercado de trabalho. A realidade educacional é no mínimo díspar em cidades como São Paulo e Manaus, porém mesmo assim, seus estudantes são avaliados com a mesma prova. Não precisar ser um sociólogo para saber que os métodos de ensino do Colégio Bandeirantes é muito distinto do de uma escola ribeirinha a beira do rio Amazonas. Não quero deste modo dizer se o programa é bom ou ruim, mas apenas lembrar que ele é uma medida paliativa para estancar uma ferida antiga, ainda aberta. E como tal, deveria ser utilizado por tempo determinado. Melhorar a educação de base, criar novas vagas no ensino superior publico, sem sucatear ainda mais a universidade. Estas sim, deveriam ser as preocupações do Estado.

"O essencial é invisível aos olhos."


Andando, o principezinho encontrou um jardim cheio de rosas. Contemplou-as...eram todas iguais à sua flor.E deitado na relva, ele chorou...E foi então que apareceu a raposa.- Vem brincar comigo, propôs o principezinho. Estou tão triste...- Eu não posso brincar contigo, disse a raposa. Não me cativaram ainda.- Que quer dizer "cativar" ?- É uma coisa muito esquecida. Significa criar laços...Tu não és ainda para mim senão um garoto inteiramente igual a cem mil outros garotos. Eu não tenho necessidade de ti e tu não tens necessidade de mim. Não passo a teus olhos de uma raposa igual a cem mil outras raposas. Mas se tu me cativas, teremos necessidade um do outro. Serás para mim, único no mundo. E eu serei para ti, única no mundo. Minha vida será como que cheia de sol. Conhecerei um barulho de passos que será diferente dos outros. O teu passo me chamará para fora da toca, como se fosse música. A gente só conhece bem as coisas que cativou.- Que é preciso fazer? perguntou o principezinho.- É preciso ser paciente. Tu te sentarás primeiro um pouco longe de mim. Eu te olharei com o canto do olho e tu não dirás nada. A linguagem é uma fonte de mal- entendidos. Cada dia te sentarás mais perto...Se tu vens por exemplo, às quatro da tarde, desde às três, eu começarei a ser feliz. Quanto mais a hora for chegando, mais eu me sentirei feliz. Às quatro horas, então, estarei inquieta e agitada: descobrirei o preço da felicidade!Assim o principezinho cativou a raposa. Mas, quando chegou a hora da partida, a raposa disse:- Ah! Eu vou chorar...a gente corre o risco de chorar um pouco, quando se deixou cativar. E acrescentou:- Vai rever as rosas. Tu compreenderás que a tua, é a única no mundo. É simples, o segredo: só se vê bem com o coração. O essencial é invisível para os olhos. Foi o tempo que perdeste com tua rosa, que fez tua rosa tão importante. Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas. Tu és responsável pela rosa...- O essencial é invisível para os olhos, repetiu o principezinho, a fim de se lembrar..." Os homens do teu planeta, disse o principezinho, cultivam cinco mil rosas num mesmo jardim...e nunca encontram o que procuram...E no entanto, o que eles buscam poderia ser achado numa só rosa, ou num pouquinho d'água...Mas os olhos são cegos. É preciso buscar com o coração..."(Antoine De Saint- Exupéry)

Texto antigo: Primavera de 2008 - Caio F, ou me escuta Zezim...


Hoje, acordei abrindo as janelas e dando bom dia ao mundo. Talvez seja essa apenas uma maneira de disfarçar o desespero e o caos interior, ou quem sabe, um modo de salvação. Bebi café, companheiro de momentos indizíveis e comi morangos, não mofados, mas vermelho sangue, bolo de chocolate e medos particulares.Ouvi Led Zeppelin e Janes Joplin, como não fazia há muito tempo. Me sinto uma criatura de três mil anos em um corpo de trinta. Carrego comigo todas as culpas do mundo e uma piedade infinita pela raça qual apesar de tudo ainda pertenço. Você, desejo pífio, está vagando pelo mesmo mundo que eu agora, mas por mais que tente não consigo mais avista-lo. Quando foi que o tudo se transformou em tão pouco? Onde estávamos para permitir o definitivamente banal? Que merda está acontecendo agora? Perdemos a direção dos olhares que nos iluminavam e ao mesmo tempo nos devorava. No entanto, fazia parte de um elo que éramos nos dois. Mesmo sem palavras, trocas ou juras. Existia nos dois. Perdidos entre cães raivosos e respeitáveis contribuintes da hipocrisia universal. Resistíamos nos dois, com nossa pequena grande história ainda não vivida, mas largamente ensaiada. E por fim mal resolvida, em meio de senhoras amantíssimas e senhores aparentemente corretos por demais. Em um covil de lobos mal comidos, com corpos enferrujados e corações embalsamados. Fomos proibidos de amar, pois nada ofende mais a esta gente do que o brilho do desejo qual eles não podem conter. A gana de trepar, de foder, de gritar, de gozar, de viver. A lucidez plena, a libertação total. Mas seu medo foi maior do que tudo o que um dia me contou com o olhar. Então, fico tentando juntar peças de um quebra cabeças que é só meu.Procuro poesia em meio à lama e aos excrementos que recebo todos os dias vindos da normalidade condicionada. Olho para estas pessoas e não consigo gritar, sinto pena e esta é minha maldição. Ainda me choco e me revolto e ao perceber isto estou mais forte, pois eles não conseguem destruir minha alma. Ainda há luz para nos salvar criança. Assim, não me arrependo de mais nada e não julgo a ti, pois só assim poderei partir sem temores afinal. Segura a minha mão e não olha para trás. Se todos vão virar sal, apaga da sua mente os pecados que não são mais nossos e escape por nos.

Texto antigo: Primavera de 2008 - “Três tristes tigres”


De alguma maneira eu a amo. Digo de alguma maneira, pois não a quero para mim, ou ao menos a desejo. Querer eu quero irremediavelmente ao homem de timbre suave e falar pausado. Qual sempre parece estar a contar histórias para crianças. Sempre não, quase sempre eu devia dizer. Já que ele não parece contar histórias para crianças quando me olha com o olhar do desejo.Já ela, com os olhos tão tristes. É a fragilidade em pessoa. Disseram-me que um câncer a tornou mais humana. Eu penso que não. Toda aquela fragilidade é inumana por demais. Quando a vejo tão magra, com os grandes olhos magoados e a pele areiada dos árabes. Imagino sua historia de mulher.Quanto a ele, também o desejo. Como uma ninfa a um gigante descomunal. E isso me apavora. No meio do silêncio que nos une e igualmente nos separa também quase que o amo, porém o abnego, pois este homem que às vezes aparece com o ar cansado, esconde um mundo. E ousou penetrar na minha absoluta solidão. Que agora não é mais minha, tão pouco é absoluta.Hoje pela manhã ela sorriu. E no falar cantado e lírico de seu sotaque indecifrável, falou de Camões. E sorriu mais. Inúmeras, incontáveis vezes, com uma alegria reconfortante. Ele, que eu não sei por onde anda ou o que fez do dia de hoje. Vai fixando-se em nós entre a tarde que se vai e a noite prestes a cair. Mais aflitamente sua imagem se faz presente dentro do escuro do que falta. E assim, perpetua-se minha espera solene, pois ele ainda falta.Ela despediu-se com um meio sorriso, como a gota derradeira depois do dilúvio. A figura serena, aureolada por uma alegria doce, suavemente me deixou. O homem que eu espero se escondeu da minha vista e foi-se, com o orgulho quase infantil quebrado e uma atitude de quem não entende o que não é obvio.Sei que irei vê-la novamente daqui a sete dias, não espero ou anseio este momento já marcado. Que só o improvável pode desarmonizar. Quanto a ele, talvez seja quatro dias ou nunca mais. O que me parece destruidor e insustentável. Eu que me fui encontrada por sua imagem em frente ao meu olhar. Hoje me sinto covarde e perdida. Sou tão frágil quanto à mulher dos grandes olhos magoados. Estou completamente desarmada e desamparada, por vezes desesperada. Sofrerei, sofro, sofri, só não tenho o jeito certo de sofrer.

Os dragões não conhecem o paraíso




Tenho um dragão que mora comigo.Não, isso não é verdade.Não tenho nenhum dragão. E, ainda que tivesse, ele não moraria comigo nem com ninguém. Para os dragões, nada mais inconcebível que dividir seu espaço - seja com outro dragão, seja com uma pessoa banal feito eu. Ou invulgar, como imagino que os outros devam ser. Eles são solitários, os dragões. Quase tão solitários quanto eu me encontrei, sozinho neste apartamento, depois de sua partida. Digo quase porque, durante aquele tempo em que ele esteve comigo, alimentei a ilusão de que meu isolamento para sempre tinha acabado. E digo ilusão porque, outro dia, numa dessas manhãs áridas da ausência dele, felizmente cada vez menos freqüentes (a aridez, não a ausência), pensei assim: Os homens precisam da ilusão do amor da mesma forma que precisam da ilusão de Deus. Da ilusão do amor para não afundarem no poço horrível da solidão absoluta; da ilusão de Deus, para não se perderem no caos da desordem sem nexo.Isso me pareceu gradiloqüente e sábio como uma idéia que não fosse minha, tão estúpidos costumam ser meus pensamentos. E tomei nota rapidamente no guardanapo do bar onde estava. Escrevi também mais alguma coisa que ficou manchada pelo café. Até hoje não consigo decifrá-la. Ou tenho medo da minha - felizmente indecifrável - lucidez daquele dia.Estou me confundindo, estou me dispersando.O guardanapo, a frase, a mancha, o medo - isso deve vir mais tarde. Todas essas coisas de que falo agora - as particularidades dos dragões, a banalidade das pessoas como eu -, só descobri depois. Aos poucos, na ausência dele, enquanto tentava compreendê-lo. Cada vez menos para que minha compreensão fosse sedutora, e cada vez mais para que essa compreensão ajudasse a mim mesmo a. Não sei dizer. Quando penso desse jeito, enumero proposições como: a ser uma pessoa menos banal, a ser mais forte, mais seguro, mais sereno, mais feliz, a navegar com um mínimo de dor. Essas coisas todas que decidimos fazer ou nos tornar quando algo que supúnhamos grande acaba, e não há nada a ser feito a não ser continuar vivendo.Então, que seja doce. Repito todas as manhãs, ao abrir as janelas para deixar entrar o sol ou o cinza dos dias, bem assim: que seja doce. Quando há sol, e esse sol bate na minha cara amassada do sono ou da insônia, contemplando as partículas de poeira soltas no ar, feito um pequeno universo, repito sete vezes para dar sorte: que seja doce que seja doce que seja doce e assim por diante.Mas, se alguém me perguntasse o que deverá ser doce, talvez não saiba responder. Tudo é tão vago como se não fosse nada.Ninguém perguntará coisa alguma, penso. Depois continuo a contar para mim mesmo, como se fosse ao mesmo tempo o velho que conta e a criança que escuta, sentado no colo de mim. Foi essa a imagem que me veio hoje pela manhã quando, ao abrir a janela, decidi que não suportaria passar mais um dia sem contar esta história de dragões. Consegui evitá-la até o meio da tarde. Dói, um pouco. Não mais uma ferida recente, apenas um pequeno espinho de rosa, coisa assim, que você tenta arrancar da palma da mão com a ponta de uma agulha. Mas, se você não consegue extirpá-lo, o pequeno espinho pode deixar de ser uma pequena dor para se transformar numa grande chaga.Assim, agora, estou aqui. Ponta fina de agulha equilibrada entre os dedos da mão direita, pairando sobre a palma aberta da mão esquerda. Algumas anotações em volta, tomadas há muito tempo, o guardanapo de papel do bar, com aquelas palavras sábias que não parecem minhas e aquelas outras, manchadas, que não consigo ou não quero ou finjo não poder decifrar.Ainda não comecei.Queria tanto saber dizer Era uma vez. Ainda não consigo.Mas preciso começar de alguma forma. E esta, enfim, sem começar propriamente, assim confuso, disperso, monocórdio, me parece um jeito tão bom ou mau quanto qualquer outro de começar uma história. Principalmente se for uma história de dragões.Gosto de dizer tenho um dragão que mora comigo, embora não seja verdade. Como eu dizia, um dragão jamais pertence a, nem mora com alguém. Seja uma pessoa banal igual a mim, seja unicórnio, salamandra, harpia, elfo, hamadríade, sereia ou ogro. Duvido que um dragão conviva melhor com esses seres mitológicos, mais semelhantes à natureza dele, do que com um ser humano. Não que sejam insociáveis. Pelo contrário, às vezes um dragão sabe ser gentil e submisso como uma gueixa. Apenas, eles não dividem seus hábitos.Ninguém é capaz de compreender um dragão. Eles jamais revelam o que sentem. Quem poderia compreender, por exemplo, que logo ao despertar (e isso pode acontecer em qualquer horário, às três ou às onze da noite, já que o dia e a noite deles acontecem para dentro, mas é mais previsível entre sete e nove da manhã, pois essa é a hora dos dragões) sempre batem a cauda três vezes, como se tivessem furiosos, soltando fogo pelas ventas e carbonizando qualquer coisa próxima num raio de mais de cinco metros? Hoje, pondero: talvez seja essa a sua maneira desajeitada de dizer, como costumo dizer agora, ao despertar - que seja doce.Mas no tempo em que vivia comigo, eu tentava - digamos - adaptá-lo às circunstâncias. Dizia por favor, tente compreender, querido, os vizinho banais do andar de baixo já reclamaram da sua cauda batendo no chão ontem às quatro da madrugada. O bebê acordou, disseram, não deixou ninguém mais dormir. Além disso, quando você desperta na sala, as plantas ficam todas queimadas pelo seu fogo. E, quanto você desperta no quarto, aquela pilha de livros vira cinzas na minha cabeceira.Ele não prometia corrigir-se. E eu sei muito bem como tudo isso parece ridículo. Um dragão nunca acha que está errado. Na verdade, jamais está. Tudo que faz, e que pode parecer perigoso, excêntrico ou no mínimo mal-educado para um humano igual a mim, é apenas parte dessa estranha natureza dos dragões. Na manhã, na tarde ou na noite seguintes, quanto ele despertasse outra vez, novamente os vizinhos reclamariam e as prímulas amarelas e as begônias roxas e verdes, e Kafka, Salinger, Pessoa, Clarice e Borges a cada dia ficariam mais esturricados. Até que, naquele apartamento, restássemos eu e ele entre as cinzas. Cinzas são como sedas para um dragão, nunca para um humano, porque a nós lembra destruição e morte, não prazer. Eles trafegam impunes, deliciados, no limiar entre essa zona oculta e a mais mundana. O que não podemos compreender, ou pelo menos aceitar.Além de tudo: eu não o via. Os dragões são invisíveis, você sabe. Sabe? Eu não sabia. Isso é tão lento, tão delicado de contar - você ainda tem paciência? Certo, muito lógico você querer saber como, afinal, eu tinha tanta certeza da existência dele, se afirmo que não o via. Caso você dissesse isso, ele riria. Se, como os homens e as hienas, os dragões tivessem o dom ambíguo do riso. Você o acharia talvez irônico, mas ele estaria impassível quanto perguntasse assim: mas então você só acredita naquilo que vê? Se você dissesse sim, ele falaria em unicórnios, salamandras, harpias, hamadríades, sereias e ogros. Talvez em fadas também, orixás quem sabe? Ou átomos, buracos negros, anãs brancas, quasars e protozoários. E diria, com aquele ar levemente pedante: "Quem só acredita no visível tem um mundo muito pequeno. Os dragões não cabem nesses pequenos mundos de paredes invioláveis para o que não é visível".Ele gostava tanto dessas palavras que começam com in - invisível, inviolável, incompreensível -, que querem dizer o contrário do que deveriam. Ele próprio era inteiro o oposto do que deveria ser. A tal ponto que, quando o percebia intratável, para usar uma palavra que ele gostaria, suspeitava-o ao contrário: molhado de carinho. Pensava às vezes em tratá-lo dessa forma, pelo avesso, para que fôssemos mais felizes juntos. Nunca me atrevi. E, agora que se foi, é tarde demais para tentar requintadas harmonias.Ele cheirava a hortelã e alecrim. Eu acreditava na sua existência por esse cheiro verde de ervas esmagadas dentro das duas palmas das mãos. Havia outros sinais, outros augúrios. Mas quero me deter um pouco nestes, nos cheiros, antes de continuar. Não acredite se alguém, mesmo alguém que não tenha um mundo pequeno, disser que os dragões cheiram a cavalos depois de uma corrida, ou a cachorros das ruas depois da chuva. A quartos fechados, mofo, frutas podres, peixe morto e maresia - nunca foi esse o cheiro dos dragões.A hortelã e alecrim, eles cheiram. Quando chegava, o apartamento inteiro ficava impregnado desse perfume. Até os vizinhos, aqueles do andar de baixo, perguntavam se eu andava usando incenso ou defumação. Bem, a mulher perguntava. Ela tinha uns olhos azuis inocentes. O marido não dizia nada, sequer me cumprimentava. Acho que pensava que era uma dessas ervas de índio que as pessoas costumam fumar quando moram em apartamentos, ouvindo música muito alto. A mulher dizia que o bebê dormia melhor quando esse cheiro começava a descer pelas escadas, mais forte de tardezinha, e que o bebê sorria, parecendo sonhar. Sem dizer nada, eu sabia que o bebê sonhava com dragões, unicórnios ou salamandras, esse era um jeito do seu mundo ir-se tornando aos poucos mais largo. Mas os bebês costumam esquecer dessas coisas quanto deixam de ser bebês, embora possuam a estranha facilidade de ver dragões - coisa que só os mundos muito largos conseguem.Eu aprendi o jeito de perceber quando o dragão estava a meu lado. Certa vez, descemos juntos pelo elevador com aquela mulher de olhos-azuis-inocentes e seu bebê, que também tinha olhos-azuis-inocentes. O bebê olhou o tempo todo para onde estava o dragão. Os dragões param sempre do lado esquerdo das pessoas, para conversar direto com o coração. O ar a meu lado ficou leve, de uma coloração vagamente púrpura. Sinal que ele estava feliz. Ele, o dragão, e também o bebê, e eu, e a mulher, e a japonesa que subiu no sexto andar, e um rapaz de barba no terceiro. Sorríamos suaves, meio tolos, descendo juntos pelo elevador numa tarde que lembro de abril - esse é o mês dos dragões - dentro daquele clima de eternidade fluida que apenas os dragões, mas só às vezes, sabem transmitir.Por situações como essa, eu o amava. E o amo ainda, quem sabe mesmo agora, quem sabe mesmo sem saber direito o significado exato dessa palavra seca - amor. Se não o tempo todo, pelo menos quanto lembro de momentos assim. Infelizmente, raros. A aspereza e avesso parecem ser mais constantes na natureza dos dragões do que a leveza e o direito. Mas queria falar de antes do cheiro. Havia outros sinais, já disse. Vagos, todos eles.Nos dias que antecediam a sua chegada, eu acordava no meio da noite, o coração disparado. As palmas das mãos suavam frio. Sem saber porque, nas manhãs seguintes, compulsivamente eu começava a comprar flores, limpar a casa, ir ao supermercado e à feira para encher o apartamento de rosas e palmas e morangos daqueles bem gordos e cachos de uvas reluzentes e berinjelas luzidias (os dragões, descobri depois, adoram contemplar berinjelas) que eu mesmo não conseguia comer. Arrumava em pratos, pelos cantos, com flores e velas e fitas, para que os espaços ficassem mais bonito.Como uma fome, me dava. Mas uma fome de ver, não de comer. Sentava na sala toda arrumada, tapete escovado, cortinas lavadas, cestas de frutas, vasos de flores - acendia um cigarro e ficava mastigando com os olhos a beleza das coisas limpas, ordenadas, sem conseguir comer nada com a boca, faminto de ver. À medida que a casa ficava mais bonita, eu me tornava cada vez mais feio, mais magro, olheiras fundas, faces encovadas. Porque não conseguia dormir nem comer, à espera dele. Agora, agora vou ser feliz, pensava o tempo todo numa certeza histérica. Até que aquele cheiro de alecrim, de hortelã, começasse a ficar mais forte, para então, um dia, escorregar que nem brisa por baixo da porta e se instalar devagarzinho no corredor de entrada, no sofá da sala, no banheiro, na minha cama. Ele tinha chegado.Esses ritmos, só descobri aos poucos. Mesmo o cheiro de hortelã e alecrim, descobri que era exatamente esse quando encontrei certas ervas numa barraca de feira. Meu coração disparou, imaginei que ele estivesse por perto. Fui seguindo o cheiro, até me curvar sobre o tabuleiro para perceber: eram dois maços verdes, a hortelã de folhinhas miúdas, o alecrim de hastes compridas com folhas que pareciam espinhos, mas não feriam. Pergunte o nome, o homem disse, eu não esqueci. Por pura vertigem, nos dias seguintes repetia quanto sentia saudade: alecrim hortelã alecrim hortelã alecrim hortelã alecrim.Antes, antes ainda, o pressentimento de sua visita trazia unicamente ansiedade, taquicardias, aflição, unhas roídas. Não era bom. Eu não conseguia trabalhar, ira ao cinema, ler ou afundar em qualquer outra dessas ocupações banais que as pessoas como eu têm quando vivem. Só conseguia pensar em coisas bonitas para a casa, e em ficar bonito eu mesmo para encontrá-lo. A ansiedade era tanta que eu enfeiava, à medida que os dias passavam. E, quando ele enfim chegava, eu nunca tinha estado tão feio. Os dragões não perdoam a feiúra. Menos ainda a daqueles que honram com sua rara visita.Depois que ele vinha, o bonito da casa contrastando com o feio do meu corpo, tudo aos poucos começava a desabar. Feito dor, não alegria. Agora agora agora vou ser feliz, eu repetia: agora agora agora. E forçava os olhos pelos cantos de prata esverdeadas, luz fugidia, a ponta em seta de sua cauda pela fresta de alguma porta ou fumaça de suas narinas, sempre mau, e a fumaça, negra. Naqueles dias, enlouquecia cada vez mais, querendo agora já urgente ser feliz. Percebendo minha ânsia, ele tornava-se cada vez mais remoto. Ausentava-se, retirava-se, fingia partir. Rarefazia seu cheiro de ervas até que não passasse de uma suspeita verde no ar. Eu respirava mais fundo, perdia o fôlego no esforço de percebê-lo, dias após dia, enquanto flores e frutas apodreciam nos vasos, nos cestos, nos cantos. Aquelas mosquinhas negras miúdas esvoaçavam em volta delas, agourentas.Tudo apodrecia mais e mais, sem que eu percebesse, doído do impossível que era tê-lo. Atento somente à minha dor, que apodrecia também, cheirava mal. Então algum dos vizinhos batia à porta para saber se eu tinha morrido e sim, eu queria dizer, estou apodrecendo lentamente, cheirando mal como as pessoas banais ou não cheiram quando morrem, à espera de uma felicidade que não chega nunca. Ele não compreenderia. Eu não compreendia, naqueles dias - você compreende?Os dragões, já disse, não suportam a feiúra. Ele partia quando aquele cheiro de frutas e flores e, pior que tudo, de emoções apodrecidas tornava-se insuportável. Igual e confundido ao cheiro da minha felicidade que, desta e mais uma vez, ele não trouxera. Dormindo ou acordado, eu recebia sua partida como um súbito soco no peito. Então olhava para cima, para os lados, à procura de Deus ou qualquer coisa assim - hamadríades, arcanjos, nuvens radioativas, demônios que fossem. Nunca os via. Nunca via nada além das paredes de repente tão vazias sem ele.Só quem já teve um dragão em casa pode saber como essa casa parece deserta depois que ele parte. Dunas, geleiras, estepes. Nunca mais reflexos esverdeados pelos cantos, nem perfume de ervas pelo ar, nunca mais fumaças coloridas ou formas como serpentes espreitando pelas frestas de portas entreabertas. Mais triste: nunca mais nenhuma vontade de ser feliz dentro da gente, mesmo que essa felicidade nos deixe com o coração disparado, mãos úmidas, olhos brilhantes e aquela fome incapaz de engolir qualquer coisa. A não ser o belo, que é de ver, não de mastigar, e por isso mesmo também uma forma de desconforto. No turvo seco de uma casa esvaziada da presença de um dragão, mesmo voltando a comer e a dormir normalmente, como fazem as pessoas banais, você não sabe mais se não seria preferível aquele pântano de antes, cheio de possibilidades - que não aconteciam, mas que importa? - a esta secura de agora. Quando tudo, sem ele, é nada.Hoje, acho que sei. Um dragão vem e parte para que seu mundo cresça? Pergunto - porque não estou certo - coisas talvez um tanto primárias, como: um dragão vem e parte para que você aprenda a dor de não tê-lo, depois de ter alimentado a ilusão de possuí-lo? E para, quem sabe, que os humanos aprendam a forma de retê-lo, se ele um dia voltar?Não, não é assim. Isso não é verdade.Os dragões não permanecem. Os dragões são apenas a anunciação de si próprios. Eles se ensaiam eternamente, jamais estréiam. As cortinas não chegam a se abrir para que entrem em cena. Eles se esboçam e se esfumam no ar, não se definem. O aplauso seria insuportável para eles: a confirmação de que sua inadequação é compreendida e aceita e admirada, e portanto - pelo avesso igual ao direito - incompreendida, rejeitada, desprezada. Os dragões não querem ser aceitos. Eles fogem do paraíso, esse paraíso que nós, as pessoas banais, inventamos - como eu inventava uma beleza de artifícios para esperá-lo e prendê-lo para sempre junto a mim. Os dragões não conhecem o paraíso, onde tudo acontece perfeito e nada dói nem cintila ou ofega, numa eterna monotonia de pacífica falsidade. Seu paraíso é o conflito, nunca a harmonia.Quando volto apensar nele, nestas noites em que dei para me debruçar à janela procurando luzes móveis pelo céu, gosto de imaginá-lo voando com suas grandes asas douradas, solto no espaço, em direção a todos os lugares que é lugar nenhum. Essa é sua natureza mais sutil, avessa às prisões paradisíacas que idiotamente eu preparava com armadilhas de flores e frutas e fitas, quando ele vinha. Paraísos artificiais que apodreciam aos poucos, paraíso de eu mesmo - tão banal e sedento - a tolerar todas as suas extravagâncias, o que devia lhe soar ridículo, patético e mesquinho. Agora apenas deslizo, sem excessivas aflições de ser feliz.As manhãs são boas para acordar dentro delas, beber café, espiar o tempo. Os objetos são bons de olhar para eles, sem muitos sustos, porque são o que são e também nos olham, com olhos que nada pensam. Desde que o mandei embora, para que eu pudesse enfim aprender a grande desilusão do paraíso, é assim que sinto: quase sem sentir.Resta esta história que conto, você ainda está me ouvindo? Anotações soltas sobre a mesa, cinzeiros cheios, copos vazios e este guardanapo de papel onde anotei frases aparentemente sábias sobre o amor e Deus, com uma frase que tenho medo de decifrar e talvez, afinal, diga apenas qualquer coisa simples feito: nada disso existe.Nada, nada disso existe.Então quase vomito e choro e sangro quando penso assim. Mas respiro fundo, esfrego as palmas das mãos, gero energia em mim. Para manter-me vivo, saio à procura de ilusões como o cheiro das ervas ou reflexos esverdeados de escamas pelo apartamento e, ao encontrá-los, mesmo apenas na mente, tornar-me então outra vez capaz de afirmar, como num vício inofensivo: tenho um dragão que mora comigo. E, desse jeito, começar uma nova história que, desta vez sim, seria totalmente verdadeira, mesmo sendo completamente mentira. Fico cansado do amor que sinto, e num enorme esforço que aos poucos se transforma numa espécie de modesta alegria, tarde da noite, sozinho neste apartamento no meio de uma cidade escassa de dragões, repito e repito este meu confuso aprendizado para a criança-eu-mesmo sentada aflita e com frio nos joelhos do sereno velho-eu-mesmo:- Dorme, só existe o sonho. Dorme, meu filho. Que seja doce.Não, isso também não é verdade.

(Caio Fernando Abreu)

Preciso de Alguém...


Meu nome é Caio F।Moro no segundo andar,mas nunca encontrei você na escadaPreciso de alguém, e é tão urgente o que digo। Perdoem excessivas, obscenas carências, pieguices, subjetivismos, mas preciso tanto e tanto. Perdoem a bandeira desfraldada, mas é assim que as coisas são-estão dentro-fora de mim: secas. Tão só nesta hora tardia - eu, patético detrito pós-moderno com resquícios de Werther e farrapos de versos de Jim Morrison, Abaporu heavy-metal -, só sei falar dessas ausências que ressecam as palmas das mãos de carícias não dadas.Preciso de alguém que tenha ouvidos para ouvir, porque são tantas histórias a contar. Que tenha boca para, porque são tantas histórias para ouvir, meu amor. E um grande silêncio desnecessário de palavras. Para ficar ao lado, cúmplice, dividindo o astral, o ritmo, a over, a libido, a percepção da terra, do ar, do fogo, da água, nesta saudável vontade insana de viver. Preciso de alguém que eu possa estender a mão devagar sobre a mesa para tocar a mão quente do outro lado e sentir uma resposta como - eu estou aqui, eu te toco também. Sou o bicho humano que habita a concha ao lado da conha que você habita, e da qual te salvo, meu amor, apenas porque te estendo a minha mão. (...)Tenho urgência de ti, meu amor. Para me salvar da lama movediça de mim mesmo. Para me tocar, para me tocar e no toque me salvar. Preciso ter certeza que inventar nosso encontro sempre foi pura intuição, não mera loucura. Ah, imenso amor desconhecido. Para não morrer de sede, preciso de você agora, antes destas palavras todas cairem no abismo dos jornais não lidos ou jogados sem piedade no lixo. Do sonho, do engano, da possível treva e também da luz, do jogo, do embuste: preciso de você para dizer eu te amo outra e outra vez. Como se fosse possível, como se fosse verdade, como se fosse ontem e amanhã.

(Caio Fernando Abreu - Crônica publicada no “Estadão” Caderno 2 de 29/07/87)Caio Fernando Abreu)

Texto antigo: Invernos de 2008 – “Adorável nordestina...”



Diga 33...não estava realmente no médico, fui trazida novamente para a realidade por uma voz simpática, quase cantada। Um profissional de RH diria:um sorriso na voz. Era um daqueles dias em que eu me sentia meio Manuel Bandeira, mas sem o talento poético. Minhas costas doíam, minha cabeça e meu peito também. O catarro grosso estava entranhando em todo meu ser. Eu tinha tido febre durante a noite, acordei suando, com o cabelo grudado na testa e um cheiro de morte. Não, eu não iria morrer ainda, pelo menos eu acreditava nisso. E também não me considero uma pessoa hipocondríaca, mas em uma dessas tentativas racionais de continuar vivendo na mais completa normalidade fui à farmácia, não há um bom especialista, mas simplesmente a antiga farmácia perto de casa. Eu moro em um país subdesenvolvido, onde saúde ainda é considerada artigo de luxo e as pessoas se automedicam, tomam chás para quase tudo e algum desses remédios que fazem propaganda na tv. O farmacêutico muito simpático fez um rombo quase irreversível na minha carteira. Não teria outro jeito, iria passar o fim de semana praticamente sem dinheiro. O que não é nenhuma novidade. Um antibiótico e um xarope, sai de lá quase confiante, como é fácil acreditar em um desconhecido que fale como quem se preocupa com a gente. Isso me faz lembrar que os maiores psicopatas do mundo parecem pessoas muito atenciosas e preocupadas com o bem estar dos outros. Saindo da farmácia eu fui para o mercado, sábado, pior que isso, primeiro sábado depois do quinto dia útil. As pessoas se amontoando, carrinhos, filas, crianças, filas, preços exorbitantes, filas, em uma verdadeira representação do inferno. Depois de quase duas horas para comprar meia dúzia de quase nada, a derradeira fila, a hora de pagar por toda aquela diversão de filas e aglomerações.Meu corpo quase desistindo e caindo derrotado pela gripe, pelos preços, por todas as filas do mundo. Foi quando no meio do meu devaneio escutei a voz daquela sergipana, que já morou em Goiás e gentilmente conversava comigo como quem me conhecesse há muito tempo. Não era alguém que queria parecer interessada ou gentil, também não era uma psicopata, mas alguém realmente interessada e gentil. Falou das vantagens de trabalhar próximo a sua casa, da suas cidades e eu falei uma ou duas palavras, esbocei um quase sorriso, paguei a compra, disse um tchau, desejei boa sorte! E resolvi escrever algo que certamente ela jamais ira ler, mas foi uma maneira de não esquecer como ainda existem boas pessoas neste mundo, que talvez não seja tão ruim...

(Inverno de 2008)

Texto antigo: (20 de Junho de 2008)

O que ainda nos choca tanto o caso Isabella?

Isabela Nardoni morreu aos cinco anos de idade. Segundo as investigações que prosseguem, a menina foi atirada do sexto andar de um edifício na zona norte da São Paulo pelo próprio pai e a madrasta. A classe média, em estado de choque seletivo, mais uma vez se vestiu de branco e foi pedir paz na avenida Paulista e na praia de Ipanema.Nesta semana, quase três meses depois da morte da menina, três jovens pobres, negros, moradores da favela da Providência no Rio de Janeiro foram entregues a traficantes do morro da Mineira por oficiais do exército. Lá, foram torturados e mortos de forma bárbara, no sentido mais lato da palavra.Os moradores da comunidade onde os três garotos moravam, entraram em confronto com a polícia local. O ministro da Defesa, Nelson Jobim, pediu desculpas às famílias das vítimas como quem pede desculpas por ter quebrado um copo ou ter chegado atrasado a um encontro com subalternos. É bem provável que daqui a um ou dois meses o caso seja esquecido como já aconteceu com tantos outros. O que certamente não ocorrerá com o caso Isabella: ela se tornará um símbolo na luta contra violência, como o garoto João Hélio, morto em um assalto em 2007.É evidente que uma vida não é mais importante que outra. Pelo menos na teoria. Os meios de comunicação em massa selecionam casos como esses entre milhares que ocorrem todos os dias no Brasil. Depois divulgam “a bola da vez” e arquivam os outros. E isso se repete na memória coletiva. Alguns casos causam comoção geral na população e outros são simplesmente deixados de lado.Os perigosos supostos assassinos de Isabella Nardoni estão presos, assim como Suzane Richthofen, mas o que aconteceu com os assassinos dos garotos da Candelária? Com o caso Sandro, sobrevivente do mesmo massacre, morto no episódio que ficou conhecido como o assalto do ônibus 174? Com os policiais que mataram sem-terras em Eldorado dos Carajás? Ou com os que invadiram o Carandiru em 1992? Alguns destes casos ainda viraram roteiros para o cinema e os outros, alguém se lembra?Macbeth é tão trágico quanto Édipo e Medéia. As forças armadas têm diante da população o dever ético de protegê-la, assim como os pais perante os filhos, embora a palavra ética esteja fora de moda. Os oficiais do morro da Providência têm que ser punidos com o mesmo rigor que o casal Nardoni, pois cometeram um crime ainda mais hediondo e covarde. Não atiraram ninguém pela janela, é bem verdade. Preferiram nem mesmo sujar as mãos.

Caio Fernando Abreu, mais uma vez...

Na terra do coração passei o dia pensando - coração meu, meu coração। Pensei e pensei tanto que deixou de significar uma forma, um órgão, uma coisa। Ficou só com-cor, ação - repetido, invertido - ação, cor - sem sentido - couro, ação e não. Quis vê-lo, escapava. Batia e rebatia, escondido no peito. Então fechei os olhos, viajei. E como quem gira um caleidoscópio, vi:Meu coração é um sapo rajado, viscoso e cansado, à espera do beijo prometido capaz de transformá-lo em príncipe.Meu coração é um álbum de retratos tão antigos que suas faces mal se adivinham. Roídas de traça, amareladas de tempo, faces desfeitas, imóveis, cristalizadas em poses rígidas para o fotógrafo invisível. Este apertava os olhos quando sorria. Aquela tinha um jeito peculiar de inclinar a cabeça. Eu viro as folhas, o pó resta nos dedos, o vento sopra.Meu coração é um mendigo mais faminto da rua mais miserável.Meu coração é um ideograma desenhado a tinta lavável em papel de seda onde caiu uma gota d’água. Olhado assim, de cima, pode ser Wu Wang, a Inocência. Mas tão manchado que talvez seja Ming I, o Obscurecimento da Luz. Ou qualquer um, ou qualquer outro: indecifrável.Meu coração não tem forma, apenas som. Um noturno de Chopin (será o número 5?) em que Jim Morrison colocou uma letra falando em morte, desejo e desamparo, gravado por uma banda punk. Couro negro, prego e piano.Meu coração é um bordel gótico em cujos quartos prostituem-se ninfetas decaídas, cafetões sensuais, deusas lésbicas, anões tarados, michês baratos, centauros gays e virgens loucas de todos os sexos.Meu coração é um traço seco. Vertical, pós-moderno, coloridíssimo de neon, gravado em fundo preto. Puro artifício, definitivo.Meu coração é um entardecer de verão, numa cidadezinha à beira-mar. A brisa sopra, saiu a primeira estrela. Há moças na janela, rapazes pela praça, tules violetas sobre os montes onde o sol se p6os. A lua cheia brotou do mar. Os apaixonados suspiram. E se apaixonam ainda mais.Meu coração é um anjo de pedra de asa quebrada.Meu coração é um bar de uma única mesa, debruçado sobre a qual um único bêbado bebe um único copo de bourbon, contemplado por um único garçom. Ao fundo, Tom Waits geme um único verso arranhado. Rouco, louco.Meu coração é um sorvete colorido de todas as cores, é saboroso de todos os sabores. Quem dele provar, será feliz para sempre.Meu coração é uma sala inglesa com paredes cobertas por papel de florzinhas miúdas. Lareira acesa, poltronas fundas, macias, quadros com gramados verdes e casas pacíficas cobertas de hera. Sobre a renda branca da toalha de mesa, o chá repousa em porcelana da China. No livro aberto ao lado, alguém sublinhou um verso de Sylvia Plath: "Im too pure for you or anyone". Não há ninguém nessa sala de janelas fechadas.Meu coração é um filme noir projetado num cinema de quinta categoria. A platéia joga pipoca na tela e vaia a história cheia de clichês.Meu coração é um deserto nuclear varrido por ventos radiativos.Meu coração é um cálice de cristal puríssimo transbordante de licor de strega. Flambado, dourado. Pode-se ter visões, anunciações, pressentimentos, ver rostos e paisagens dançando nessa chama azul de ouro.Meu coração é o laboratório de um cientista louco varrido, criando sem parar Frankensteins monstruosos que sempre acabam destruindo tudo.Meu coração é uma planta carnívora morta de fome. Meu coração é uma velha carpideira portuguesa, coberta de preto, cantando um fado lento e cheia de gemidos - ai de mim! ai, ai de mim!Meu coração é um poço de mel, no centro de um jardim encantado, alimentando beija-flores que, depois de prová-lo, transformam-se magicamente em cavalos brancos alados que voam para longe, em direção à estrela Veja. Levam junto quem me ama, me levam junto também.Faquir involuntário, cascata de champanha, púrpura rosa do Cairo, sapato de sola furada, verso de Mário Quintana, vitrina vazia, navalha afiada, figo maduro, papel crepom, cão uivando pra lua, ruína, simulacro, varinha de incenso.Acesa, aceso - vasto, vivo: meu coração é teu.

(Inverno /2009)

Não sou seu que está beijando...


Não, nunca aconteceu nada entre nós. É o que vou responder se algum dia alguém me perguntar. Entre nós nunca houve nada, mas entre eu e você e não você e mim, entende?
Veja bem, quando digo eu e você e não você e mim e porque a evidente unilateralidade nunca deixou dúvida alguma.
As possibilidades são infinitas. Quando você sentou-se ao meu lado, saído do mais intimo do meu ser. Como é patético, o mais intimo do meu ser...não foi exatamente de lá que você saiu, eu nem ao menos sei se existe tal lugar em mim.
Você saiu de dentro da minha cabeça confusa e tola, sentou-se ao meu lado, bem ao meu lado.
A princípio, eu não te vi, mas quando te achei, encontrei não só a momentânea alegria, mas o terror duradouro e destrutivo. Se eu nunca mais te visse o mundo seria tranqüilo novamente, entretanto eu nunca mais encontraria a paz.
Para falar a verdade, te ver ou não, não muda mais nada. Já que sua imagem desconexa está gravada na minha retina interior. Mesmo se eu arrancasse os olhos continuaria a ver-te com as lembranças que eu não consigo conter. Umas reais – um “olá” -um “boa noite!” - um olhar atravessando minha dignidade...outras meramente fantasiosas e inventadas em noite insones e sozinhas, portanto mais preciosas...cheiros, gostos, toques...quanto ridícula pode ser uma mulher? Quanto apavorante pode ser uma cidade iluminada? Um quarto vazio? E o silêncio...
(Inverno/ 2009)

Tudo no mundo começou com um sim...


Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida. Mas antes da pré-história havia a pré-história da pré-história e havia o nunca e havia o sim. Sempre houve. Não sei o quê, mas sei que o universo jamais começou.
Que ninguém se engane, só consigo a simplicidade através de muito trabalho.
Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta continuarei a escrever.

(Clarice Lispector)

Acho que esse é um bom começo...

(Inverno/ 2009)